
A INSURGÊNCIA QUE VEM DO CENTRO
Na QI 5 do Lago Sul, a casa Cerrado Cultural é o lar para a arte contemporânea de artistas do Centro-Oeste
Por Giovanna dos Santos

Foto: Giovanna dos Santos
Quem transita pelo setor de chácaras do Lago Sul nem imagina que, no meio dos casarões, há um espaço que abriga uma coletânea de trabalhos de arte contemporânea. Tem ‘cara’ de uma residência como qualquer outra, e até pouco tempo era mesmo, não fosse as recém instaladas esculturas de Amilcar de Castro bem no meio do jardim da entrada, aquelas de metal que o artista usa como marca registrada.
Na frente delas, o que antes era uma piscina, agora é um espaço em potencial para criação artística. A antiga sauna agora é uma sala vazia esperando para se tornar sala de aula de residência em artes, um projeto que ainda está no papel. E o interior abriga Rubem Valentim e mais 15 artistas. Figurativamente, é claro.
O andar de cima inteiro é reservado para quadros e esculturas com as composições geométricas bem características de Valentim, uma verdadeira homenagem à vida e carreira do pintor e escultor baiano. Mas assim que o visitante entra no centro de exposições Cerrado Cultural, depara-se logo de cara com uma exposição de nome peculiar: O Centro é o Oeste Insurgente.
Fotos: Giovanna dos Santos
O espaço
O Cerrado Cultural foi inaugurado em 17 de agosto de 2024. Trata-se de um espaço pensado numa iniciativa de fomentar a cultura pelas artes visuais no Centro-Oeste através de exposições e ações de caráter educativo, como debates com artistas e visitas guiadas para estudantes. A realização de aulas de residência artística é um possível projeto para 2025, juntamente com outras propostas de incentivo à arte educação. A ideia é ser uma extensão da Cerrado Galeria, uma galeria privada que já existia antes no centro comercial da QI 5 do Lago Sul.
“O dono, Lúcio Albuquerque, estava sentindo falta de um ambiente maior para os trabalhos em exposição na Cerrado Galeria, e ao levar em conta as grandes esculturas do Amilcar de Castro que ele tinha, ficou urgente aumentar a abrangência do centro”, explica Beatriz Medeiros, 29 anos, arte educadora e mediadora do Cerrado Cultural. “Foi uma surpresa achar essa chácara 10 na QI 5 mesmo, tão perto da Cerrado Galeria.”
A Cerrado Galeria é fruto da convergência das trajetórias de três galeristas provenientes de lugares diferentes do Brasil: Antônio Almeida e Carlos Dale, sócios fundadores da Almeida & Dale Galeria de Arte, de São Paulo, e o próprio Lúcio Albuquerque, um dos sócios fundadores da Casa Albuquerque, de Brasília. Estes são os nomes à frente dos locais expositivos da Cerrado Galeria, que possui duas sedes, a de Brasília e uma outra em Goiânia.
Os ideais em comum de viabilizar a produção de arte local e dar palco para artistas insurgentes e consagrados na região central do país foram o pontapé inicial para que a parceria entre os sócios fosse possível. A Lúcio surgiu a oportunidade de ocupar a chácara 10 da QI 5, pertencente à família Mokdissi, construída nos anos 1970 e tão bem conservada pelos donos. Por sorte, a família tem um histórico de membros artistas, então a possibilidade de uma parceria com o sócio foi feita de muito bom grado.
Agora Brasília pode contar com ambos os espaços para a formação de público e para dar um merecido destaque à arte contemporânea produzida especificamente na capital e na região Centro-Oeste como um todo.
“As exposições serão renovadas com o tempo, numa transição para dar lugar a diferentes artistas". Beatriz menciona a ideia de estimular a arte local, chamar eventualmente as pessoas para expor e produzir no Cerrado quando os projetos educacionais forem concretizados e criar editais para que as pessoas possam submeter seus trabalhos. "Temos um canal muito aberto para isso”, conclui.
Vídeo: Divulgação
Instagram / @cerrado.galeria

A exposição
A exposição temporária "O Centro é o Oeste Insurgente" tem curadoria da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz e do artista visual e desenhista Divino Sobral. A mostra aconteceu até a primeira semana de novembro. O andar térreo do Cerrado Cultural foi dedicado à apresentação de obras de 15 artistas que nasceram ou moram na região Centro Oeste. Mas além da região, o que mais eles têm em comum? Ascendência africana e indígena.
Dessa forma, os trabalhos reunidos nesta exposição buscaram levantar questões insurgentes na sociedade e nas artes, a partir de aspectos de racialização e sexualidades não normatizadas. O viés social e político do acervo remonta inclusive às injustiças praticadas na região central, como o desmatamento da natureza e a insubordinação negra e indígena, populações que sempre foram vulneráveis ao longo de toda a história do país.
Um aspecto interessante que alguns dos artistas procuraram mostrar é uma espécie de releitura do recorrente retratismo brasileiro nas artes, que remonta a centenas de anos, no qual o homem branco é visto em posição dominante e protagonista, ao passo de que os negros e indígenas são retratados nas suas condições de subjugação. O imponente em contraposição ao impotente.
“Nas pinturas do Douglas Ferreiro, por exemplo, ele coloca pessoas pretas para ocupar um lugar que sempre foi ocupado pelas pessoas brancas na arte”, diz Beatriz sobre o trabalho de Douglas.

Foto: Giovanna dos Santos
A releitura
“É isso mesmo. Esses meus dois quadros que estão na Cerrado surgiram depois que eu fiz uma residência artística chamada Pemba Residência Negra, e durante esse processo haviam conversas com curadores”, diz Douglas Ferreiro, ao contextualizar as obras de autoria própria que foram expostas no Cerrado Cultural.
“Um curador chamado Kleber Amâncio me apresentou uma pintura de um artista piauiense, e eu também sou do Piauí, chamado Lucílio de Albuquerque. Esse artista, se eu não me engano, estava em vigor naquele período onde era bastante comum artistas representarem a figura da mãe preta, naquele lugar de mulher escravizada cuidando de crianças brancas. E por conta disso, elas acabavam deixando o cuidado dos seus próprios filhos de lado para poder cuidar dos filhos das pessoas para quem elas trabalhavam.”
Segundo o artista, é a partir dessa inspiração que ele produziu o quadro “Mãe-flor em seu ninho de antúrios”, no qual é possível observar uma mãe preta amamentando uma criança preta. Trata-se de uma releitura do retratismo daquele período em que as escravas não tinham escolha senão priorizar a amamentação dos bebês filhos de seus patrões, em detrimento de suas próprias crias.
“Na minha releitura, pintei a mãe preta ao redor de um jardim de antúrios, planta bem comum aqui em Brasília. Antúrios me lembram muito o paisagismo nos prédios da Asa Norte. E então ressignifico a pintura de Lucílio a partir da humanização da criança preta que tem que ser deixada de lado. Eu acabo suprimindo a criança branca e levando a criança preta pro lugar de direito dela, e trago a amamentação como um ninho, um lugar que nutre.”
Douglas Ferreiro

Mãe-flor em seu ninho
de antúrios
2023
Óleo e brinco sobre tela
Um dia desenharam flores
no meu corpo pequeno.
Eu estava completamente
sozinho.
2023
Óleo e brinco sobre tela
Foto: Giovanna dos Santos
É perceptível a predileção de Douglas por cores fortes e variadas, e por colocar a figura de uma pessoa preta como personagem central da obra, ao redor de flores que o fazem lembrar de Brasília. Na pintura da direita, o homem está sentado sob alguns copos de leite, plantas que Douglas também costuma observar bastante pela capital.
Natural de Teresina, no Piauí, Douglas migrou para Brasília com a família quando era criança. Hoje com 28 anos, é estudante de Letras pela Universidade de Brasília (UnB), professor da Secretaria de Educação e artista visual. A partir do interesse pelas artes e de um trabalho como mediador no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), o piauiense mergulhou na missão de contar histórias por uma narrativa que envolve a imagem no lugar do texto.
“A ideia é justamente poder pensar narrativas onde uma única imagem conseguiria contar uma história por si só. Esse objetivo vem de uma disciplina de Letras que fiz onde trabalhamos com o gênero literário. A liberdade de criar um conto para além de palavras foi a minha inspiração para seguir no caminho da pintura em óleo”, conclui Douglas.
Outros artistas
Bem ao centro de uma das salas da exposição foi instalado um trabalho de Helô Sanvoy. O goiano de 39 anos diz que seu repertório não se encaixa em uma categoria única, perpassando por diferentes técnicas e linguagens, como desenho, instalação, escultura e performance, por exemplo. Em “Lucidez difusa”, o artista brinca com vidro temperado fragmentado e couro trançado.
“O vidro é um material tão comum, muito usado para criar ambientes. Fachadas de banco, vitrines de shopping, portas, o vidro está muito presente na arquitetura e na vida urbana. O vidro temperado que usei na obra está quebrado em um monte de pedacinhos e é fosco, tirando o aspecto da transparência. Eu quis brincar com o conceito de que o vidro está tão presente no cotidiano, mas nem todos podem ver por ele ou passar por ele”, explica Helô.
“Já o couro representa a pele, o corpo vivo. Uso diferentes tons de marrom para diferentes tons de pele escura e as tranças são comumente usadas como um penteado entre pessoas negras. A ideia de usar esse material foi nessa perspectiva de simbologia, do corpo negro tentando adentrar lugares e ficando preso entre os fragmentos de vidro, nesse gesto de luta e esforço”, contextualiza o artista.
Helô Sanvoy

De longas beiras
(Lucidez difusa)
2023
Cacos de vidro temperado, couro,
chumbo e alumínio
Margem afora
(Lucidez difusa)
2022
Cacos de vidro temperado, couro,
chumbo e alumínio
Foto: Giovanna dos Santos
Críticas sociais atrás de críticas sociais continuam a encher os olhos do visitante que perambula pelos salões do andar térreo do Cerrado Cultural. Os quadros de Talles Lopes que fazem uma afronta à imigração portuguesa ao Brasil e à relação violenta de colonização que se seguiu. Pinturas de Alice Lara de animais sendo caçados e brutalmente assassinados. Os autorretratos de Antônio Obá, a pele negra na terra marrom, a boca coberta pela areia e os olhos fechados por búzios, um simbolismo de cegar e calar o personagem.
Também tem mais releitura atrás de releitura. Hal Wildson apostou em um novo design para a bandeira do Brasil, com uma coroa imperial, armas e uma vaca ao centro. “Vai da interpretação de cada um, mas eu instantaneamente penso numa crítica ao agro, né”, aponta Beatriz Medeiros. Desenhos do mapa do Brasil estampado por rostos de indígenas também compõem o trabalho de Wildson.
A mediadora dá um destaque especial às obras de Dalton Paula, demonstrando bastante admiração pela arte do brasiliense. Além de um grande quadro de uma rede presa por facões a duas bananeiras, o que chama atenção são os alguidares de barro espalhados pelo chão. Neles, pessoas negras muito bem vestidas e realizando atividades diversas.
“O Dalton também é um artista que se preocupa em questionar o lugar que o corpo preto ocupa na sociedade”, Beatriz dá um direcionamento ao processo criativo do artista. “É interessante a escolha do alguidar, um objeto que é usado no Brasil para tantas finalidades. Lavar algo, fazer um pão, ou até para depositar oferendas para orixás. É muito ligado ao aspecto religioso, candomblé, umbanda”.
Veja algumas outras obras expostas:
Fotos: Giovanna dos Santos
As mediadoras
Estudantes e professores em uma visita guiada na Cerrado Cultural.
Fonte: Divulgação / Instagram @cerrado.galeria
Para conhecer o Cerrado Cultural, os visitantes podem chegar ao local sem hora marcada e ter acesso aos espaços de forma totalmente gratuita. E para saber mais sobre o contexto por trás de cada arte exposta, podem contar com as visitas guiadas de Beatriz Medeiros e Débora Passos.
Ambas atuam como mediadoras, na função de trazer informações sobre as peças e um pouco sobre os autores. São elas as responsáveis por receber, inclusive, as crianças e adolescentes que têm sido levadas por escolas da região com cada vez mais frequência.
“Em só dois meses de casa, já estamos conseguindo trazer muitos alunos para visitar, o que é importantíssimo para a formação e a criatividade da criança e do adolescente. Queremos que qualquer pessoa venha, de visitante a comprador”, afirma Beatriz. Algumas obras estão à venda no Cerrado Cultural, tanto na exposição do Centro-Oeste, quanto na de Rubem Valentim.


“Eu fiquei muito feliz mesmo de trabalhar com mediação em uma exposição em que foram destacados artistas somente indígenas e pretos aqui no andar de baixo. E de estar vendo essa produção sendo endossada, sendo comentada. É ótimo poder celebrar a potência de um artista de renome como o Rubem Valentim e dar espaço para a arte contemporânea produzida especificamente na região em que a gente vive, o Centro-Oeste”, conclui a mediadora.
“Estamos focados no Centro-Oeste, porque entendemos que será um grande mercado e tem uma carência muito grande, não só de galerias, como de instituições, então, nossa ideia é fazer um espaço vivo, rotativo, que pode receber escolas, grandes exposições, residências de artistas e formar um público especial que acho que o Centro-Oeste tem a nos oferecer”, afirma Antônio Almeida, um dos idealizadores do Cerrado Cultural, ao jornal Metrópoles.
Uma casa é lugar de acolhimento, história e memórias. E é isso que tem sido o centro artístico erguido a partir das fundações de uma antiga e bem conservada chácara no Lago Sul. Aliás, as três sedes da Cerrado, as duas de Brasília e a de Goiânia, seguem cumprindo o papel de espaço de acolhimento a artistas ligados à região central do país, missão inicial e ainda atual dos três sócios que idealizaram tal projeto.

Beatriz Medeiros e Débora Passos na galeria Cerrado Cultural.
Foto: Giovanna dos Santos