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RAÍZES DO MARANHÃO EM SOLO CANDANGO

O Boi de Seu Teodoro é herança do mestre maranhense aos familiares

e uma tradição viva em Sobradinho

Por Giovanna dos Santos

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Foto: Davi Mello; Fonte: Instagram / @boideseuteodoro

A mistura de sensações era tamanha que ficava difícil se concentrar em uma coisa só. As cores vibrantes dos materiais usados para decorar as fantasias e o cenário da festa imediatamente atraíam os olhos de quem entrava no Centro de Tradições Populares de Sobradinho. Na caixa de som, o sotaque da Baixada, ou sotaque de Pindaré, alcançava os ouvidos com a famosa melodia de percussão característica da Baixada Maranhense. Um cheiro agradável de carne de sol vinha da cozinha e invadia o salão principal. Era para abrir o apetite dos brincantes que estavam trabalhando desde cedo nos preparativos da última festa anual do Boi de Seu Teodoro.

 

Tamatatíua Freire havia ficado até 4h da madrugada adiantando as decorações, e algumas horas depois, voltou ao espaço para auxiliar nos retoques finais. A festividade estava marcada para às 16h naquele domingo de agosto. O irmão de Tamá, Guarapiranga Freire, de 49 anos, também havia madrugado para certificar-se que o andamento dos trabalhos estivesse dentro do planejado, sendo esta uma de suas várias atribuições como presidente do Centro.

 

Aliás, são muitas as responsabilidades dos filhos do criador dessa festa, e dar seguimento ao legado que o mestre Teodoro deixou não é tarefa fácil. Mas Tamá e Guará sempre puderam contar com a ajuda dos demais irmãos, além dos brincantes que foram se juntando ao grupo ao longo dos anos e que até hoje dedicam-se a manter vivo o Bumba Meu Boi de Seu Teodoro.

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Tamá e Guará Freire no Centro de Tradições Populares de Sobradinho

Foto: Giovanna dos Santos

A trajetória do mestre

Quem relembra a história de vida do homem que trouxe a brincadeira do Boi para Brasília são os filhos de Teodoro, Tamá e Guará. As memórias somam-se a um embasamento coletado em uma pesquisa bibliográfica de 2012, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do Boi de Seu Teodoro, metodologia de identificação de bens culturais desenvolvida no âmbito do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O INRC foi concebido como um projeto do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), do Governo do Distrito Federal (GDF).

 

Teodoro Freire nasceu em 9 de novembro de 1920, na área rural de São Vicente de Férrer, na Baixada Maranhense. Conta-se que, ainda menino, Teodoro pulava a janela de casa para assistir a apresentações de bois que aconteciam com frequência no Maranhão. A família do rapaz não “brincava o Boi”, mas fazia outras festas e celebrações, como o Tambor de Crioula, a Festa de São Benedito e a Festa do Divino Espírito Santo. A brincadeira tradicional nordestina favorita de Teodoro, no entanto, sempre foi o Bumba Meu Boi.

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Teodoro Freire, 1979.

Fonte: Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC/Iphan) do Bumba Meu Boi de Seu Teodoro

​Aos 10 anos de idade, ele foi morar na capital do estado, São Luís, e foi naquela época que começou a trabalhar. Era faz-tudo em uma casa de família. A avó sempre dizia que o menino tinha grande disposição para aprender diversos ofícios, já que gostava de ver e acompanhar as pessoas. Teodoro teve muitos empregos: foi ajudante de pedreiro, vendedor em boteco e quitanda e até funcionário de uma firma de importação e exportação de babaçu, óleo e arroz, que entrou em decadência na Segunda Guerra Mundial devido a restrições na navegação marítima e comércio internacional.

 

Teodoro sempre esteve antenado nas perseguições que a polícia fazia ao povo que brincava o Boi e batia tambor em São Luís. Afinal, brincadeiras populares desse tipo no Maranhão possuem um histórico de repressões por parte dos governos vigentes desde a década de 1860. Por muitos anos, o Boi era acusado de ser gerador de perturbações na ordem pública e, não raramente, manifestações folclóricas do gênero eram proibidas na capital. Foi com muita luta e resistência do povo maranhense que essa realidade mudou, por volta da época que Teodoro era criança.

 

Em 1953, aos 33 anos, Seu Teodoro viu uma oportunidade de migrar para o Rio de Janeiro, então capital do país. O maranhense juntou-se a uma massa de nordestinos que chegaram ao território carioca na condição de assalariados para qualquer função. No caso de Teodoro, empregou-se como servente na construção civil. Foi morar no bairro de Bonsucesso e casou-se com D. Maria Sena Pereira Freire.

A origem do Boi de Seu Teodoro

“Todos os dias, meu pai lia o jornal no Rio de Janeiro e não via nenhuma notícia sobre o Maranhão. Ele ficava indignado e ia atrás dos conterrâneos perguntar porque ninguém nunca falava da terra natal dele na capital”, recorda Tamá Freire. Segundo ela, esse foi o gatilho para que ele criasse uma brincadeira do Bumba Meu Boi, lá em Bonsucesso mesmo.

“Os jornais só falam das grandes capitais, mas o Maranhão é um grande estado. Eu vou fazer um Bumba Meu Boi aqui no Rio para sair notícia sobre a cultura da minha terra todo dia.” 

“Era isso o que meu pai dizia”. Tamá relembra a iniciativa do pai de juntar a turma de conterrâneos no bairro onde morava para dar vida ao folclore maranhense na grande metrópole. Nascia então, no carnaval de 1955, um grupo identitário que buscava coletivamente fortalecer as raízes da cultura do Bumba e do Tambor de Crioula no RJ. A trupe maranhense, liderada por Seu Teodoro, se apresentou nas ruas no ano seguinte, e assim foi até 1960.

 

A perspectiva do nascimento de uma nova capital brasileira lhe abriu ainda mais portas. Como líder e empresário do grupo, Teodoro Freire buscou estabelecer relações com pessoas ligadas a instituições culturais. Conheceu o escritor Edison Carneiro (1912 - 1972), que atuou como diretor executivo da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), criada durante o governo de Juscelino Kubitschek para garantir a preservação do folclore do país.

 

E foi através de Carneiro que Seu Teodoro recebeu um convite do escritor e dramaturgo consagrado Ferreira Gullar (1930 - 2016),  para se apresentar com o Boi no primeiro aniversário de Brasília. Para o maranhense, a chance de trazer o Bumba para Brasília logo no primeiro ano de existência da cidade não podia ser desperdiçada. O sucesso da apresentação de 1961 foi tamanha que atraiu os olhares do deputado maranhense Antônio Dino (1913 - 1976). O político então convidou Teodoro para morar na nova capital em 1962, sob a condição de empregá-lo como ajudante na chácara na qual era dono.

 

“Ele veio, só que não se deu bem com esse trabalho porque não sabia criar bicho. Minha mãe contava que ele ficava chorando, triste porque os bichos morriam e ele não sabia o que fazer”, compartilha Tamá. Ele acabou desistindo da função e, com a renda que recebeu de Dino, somada a uma quantia que já tinha guardada, conseguiu comprar um lote na Quadra 4 da cidade-satélite de Sobradinho, onde passou a morar com esposa e filhos.

 

Em 1963, Antônio Dino conseguiu que o Governo do Distrito Federal cedesse um amplo terreno na Quadra 15, para que se tornasse a sede do Boi de Seu Teodoro e demais brincadeiras populares que o mestre realizava. Foi construído um barracão de alvenaria, inicialmente nomeado Sociedade Brasiliense de Folclore em Sobradinho. Mais tarde, o nome mudaria para Centro de Tradições Populares de Sobradinho. Para manter o local, o maranhense passou a trabalhar como contínuo na Universidade de Brasília (UnB), onde ficou por 28 anos.

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Foto: Divulgação / Instagram @boideseuteodoro

As memórias de Tamá

Teodoro Freire era abençoado com uma extensa família. Antes de se casar com D. Maria, já tinha filhos no Maranhão, que foram criados desde muito pequenos no Rio de Janeiro. Em Brasília teve mais seis, e Tamatatíua Freire, hoje com 58 anos, foi uma delas. Ao todo, 11 filhos e filhas cresceram brincando o Boi junto com o pai, não importa a cidade em que estivessem.

 

Logo que se estabilizou em Sobradinho, o mestre do Boi convidou a equipe que se apresentava com ele no Rio para morarem na capital também. Com a vida feita no estado carioca, emprego, casamento e filhos, nenhum brincante aceitou o convite. O maranhense teve então que recomeçar outro grupo do zero.​

Tamá explica que o pai começou reunindo alguns vizinhos e migrantes também naturais do Maranhão que iam se estabelecendo em outros bairros. Eventualmente, conseguiu recrutar 20 homens diretamente do estado nordestino para vir participar das festividades. Com a promessa de emprego na capital que se fazia, os novos integrantes encontraram ambiente favorável para a manifestação da cultura e das tradições de sua terra natal.

 

“No começo, os homens dormiam e tomavam banho no barracão da Quadra 15, mas as refeições eram sempre lá em casa. Lembro de ver todos os dias aqueles panelões para alimentar um bando de esfomeados, mamãe tinha era trabalho”, lembra Tamá, saudosa dos momentos em que a casa vivia cheia de brincantes. “Era gente pra lá e pra cá o tempo todo, mais os filhos de cada um. Era mesmo uma casa bem cheia.”

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Ainda quando criança, Tamá ouviu os homens pedirem ao mestre que fizessem também a brincadeira do Tambor de Crioula. Isso para que matassem ainda mais a saudade de casa e não desejassem voltar para o Maranhão. “A gente brincava o Boi, tocava o Tambor e jogava dominó, tudo para distrair o pessoal. Papai tinha que mantê-los ocupados para que não fossem embora”.

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Tamá e Teodoro Freire, 2009.

Fonte: Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC/Iphan) do Bumba Meu Boi de Seu Teodoro

O Tambor de Crioula é uma manifestação cultural de matriz afro-brasileira, cujas rodas de tambor homenageiam a São Benedito. Em meio ao entretenimento, mas também à devoção, os tocantes pegam em tambores e matracas para conduzir o ritmo que acompanha a voz dos coreiros.

 

Tanto o Tambor de Crioula como a brincadeira do Bumba meu Boi possuem raízes no catolicismo, homenageando santos como São Benedito, São João Batista, São Sebastião, Santo Antônio e por aí vai. Sendo assim, uma tradição que compõe os rituais folclóricos de ambas as festas é a reza de ladainhas, uma forma de oração baseada na repetição e na súplica, entoada por um cantador em versos que se alternam com o refrão repetido pelo coro. Aos 15 anos, Tamá tomou a frente das ladainhas do grupo de Seu Teodoro.

 

“Sobradinho sempre foi uma cidade muito católica. Onde tinha uma festa junina, onde tinha um devoto de santo, tinha gente que pedia ladainha”, afirma a brasiliense. “Desde menina eu ia aprendendo como esse rito religioso funcionava. Quando fiz 15 anos, a gente estava sem cantador para conduzir as ladainhas, então eu assumi essa responsabilidade. Para mim era um prazer ir até as casas das pessoas e rezar com elas”.

Foto: Gabriela @gabiiils

Divulgação / Instagram @boideseuteodoro

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Foto: Webert da Cruz

Divulgação / Instagram @boideseuteodoro

O crime de Pai Francisco

As expressões culturais organizadas em torno da brincadeira do Boi são diversas em todo o território nacional. No próprio Maranhão existem centenas de grupos brincantes. Esse costume é importante para o seu povo de tal forma que, em 2019, o “Bumba Meu Boi do Maranhão” recebeu reconhecimento internacional e foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.

 

Mas o Boi de Seu Teodoro é único, uma vez que é definido pelos próprios membros como uma manifestação singular do Bumba Meu Boi do Maranhão em Brasília. A história de um Boi que atravessou diferentes estados, reuniu tantos migrantes - generalizados como “candangos nordestinos” - e resultou em um grupo de identidade diferenciada, mas sem jamais deixar de lado as origens.

 

Em se tratando de origens, o enredo das festas do Boi de Teodoro Freire resgata a lenda urbana que surgiu no Nordeste no século XVIII, época em que o gado bovino era protagonista da economia local. 

 

Escravos em uma fazenda no período colonial, Pai Francisco e Mãe Catirina teriam um filho. O homem mata o boi favorito de seu senhor para satisfazer o desejo da esposa grávida de comer língua de boi. Ao descobrir que seu boi de estimação estava morto, o senhor, enfurecido, procura o culpado entre seus escravos e índios e, ao descobrir o crime de Pai Francisco, obriga-o a trazer o animal de volta. Quando nem um médico é capaz de ressuscitar a criatura, o senhor recorre à ladainha de um pajé. Após a reza, o boi urra e finalmente é ressuscitado.

O primeiro ensaio dos brincantes

Em memória à história de Pai Francisco e Mãe Catirina, todas as etapas da brincadeira do boi são um momento de alegria e celebração. Os preparativos e festas acontecem ao longo do ano com um calendário de eventos sucessivos e coordenados, com base em datas importantes para os católicos. E para organizar, montar e realizar festejos tão grandes e ornamentados, é preciso ensaiar.

 

Seguindo a Sexta-feira Santa e a Quaresma, o Sábado de Aleluia marca o primeiro ensaio para as brincadeiras do Boi que acontecerão em meses posteriores. Trata-se de uma data móvel, que varia entre os meses de março e abril, a depender de quando será o feriado religioso naquele ano. A partir deste sábado o grupo de brincantes passa a se reunir semanalmente, também aos sábados, para dar sequência a mais ensaios até o primeiro grande evento.

 

Tradicionalmente, é durante o primeiro ensaio que são apresentadas as novas “toadas” do Boi, ou seja, as músicas que serão performadas nas festas e que são renovadas a cada ano de forma obrigatória. O ritmo que rege as canções dos grupos de Bumba Meu Boi pelo Brasil é conhecido como “sotaque”, subdividido em algumas categorias cujas influências musicais são majoritariamente indígenas ou africanas: o sotaque de matraca, de Zabumba, de Orquestra, da Baixada e Costa de Mão. O que diferencia cada um vai desde a escolha dos instrumentos até as especificidades das roupas e coreografias.

 

Teodoro inicialmente criou o Boi em Bonsucesso embalado pelo sotaque de Zabumba, com pandeirinhos, maracás e as próprias zabumbas (grandes tambores). Com o tempo, o grupo em Sobradinho passou a incorporar o sotaque da Baixada, cujo toque dos pandeiros e matracas é mais lento, suave e compassado.

 

A pessoa responsável por compor, liderar a cantoria das toadas nas festividades e apresentar novo repertório musical no primeiro ensaio é o “amo do boi”. Um grupo pode conter mais de um amo compositor das toadas, contudo, é necessário ter um amo principal para conduzir os ensaios e apresentações. Quem exerce esse papel na equipe do mestre Teodoro há 31 anos é Raimundo João Ferreira.

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“Meu pai cantava o Boi no Maranhão e uma tia minha que morava em Brasília indicou o nome dele para o Seu Teodoro, que estava precisando de um amo para o Boi dele”, conta Silvia Regina Ferreira, 41 anos, filha de Raimundo. “Então o mestre mandou buscar meu pai em 1993. Depois de um ano experimentando cantar aqui, ele voltou para buscar eu, minha mãe e meu irmão. Eu tinha 10 anos na época.”

 

Silvia mora em Brasília desde menina e, hoje mãe de um filho com 20 anos e outro com 18, não deseja sair da capital. “Não tenho vontade de voltar pro Maranhão. Meu pai até diz que gostaria de voltar, mas acho que ele fala só ‘da boca pra fora’. Quando ele passa 15 dias de viagem por lá, já fica doido para voltar para Brasília. É onde estão as memórias dele com Seu Teodoro, afinal”.

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Silvia Regina e Raimundo João Ferreira.

Foto: Arquivo pessoal

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Silvia, Raimundo e os filhos Patrick e Eric.

Foto: Arquivo pessoal

O batizado do Boi

As festividades do Bumba Meu Boi de Seu Teodoro têm início ainda no mês de janeiro, com a Festa de São Sebastião. Um altar é arrumado no Centro de Tradições Populares de Sobradinho em homenagem ao santo, e há 15 anos esse trabalho é coordenado por Tamá. Mas é somente no fim do primeiro semestre do ano que o Boi surge e é preparado para brincar.

 

O dia 23 de junho é véspera de São João. Também é época de arrumar uma nova roupagem para o altar que cultua este santo. E é o momento em que o Boi finalmente chega ao local da festa e passa por um ritual que o permite ir brincar por aí. Esta é a etapa do batizado do animal, o auge das festividades do Bumba Meu Boi.​​

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Diretamente do Maranhão, o Boi chega todos os anos a Brasília e fica armazenado em uma sala no barracão até a festa junina. O amo (o cantador principal) então reúne os brincantes para buscar o animal e levá-lo ao centro da celebração. Este processo é chamado de reunida. Os presentes cantam a “Guarnicê” - palavra de origem indígena que significa uma preparação para as festas juninas tradicionais -, uma espécie de louvor ao santo padroeiro do evento.

 

Rezam a ladainha de São João Batista, interrompida quando os padrinhos da brincadeira chegam para conduzir o batizado. Terminado este ritual, retoma-se a reza e o resto da festa é conduzida por muita dança e pelo som das toadas compostas especificamente para aquele momento.

Guará Freire explica sobre as festividades do Boi.

Vídeo: Divulgação /Instagram @boideseuteodoro

“Essa festa sempre recebe muitos visitantes e convidados do grupo. É somente aí que o Boi está pronto para brincar, como se fosse um rito de iniciação”, explica Tamá Freire. “Para ser batizado, o couro do bicho precisa ser novo. A gente aproveita o trabalho de artesãos maranhenses, que bordam os bois para a gente todos os anos.”

 

Aliás, a maioria dos materiais utilizados no Boi de Seu Teodoro são confeccionados no Nordeste. “Muitas pessoas vivem do artesanato por lá, aqui na capital esse trabalho manual e os materiais não são tão fáceis de encontrar. Absolutamente tudo é bordado a mão. É caro e demora para fazer”, diz a filha de Teodoro.

 

Como existem centenas de grupos de Bumba Meu Boi no Nordeste, os artesãos espalhados pela região sabem melhor do que ninguém como preparar o couro novo e decorá-lo com as miçangas e canutilhos. E usam o veludo preto como uma tela para fazer arte a partir da exploração de temáticas diversas. Tamá conta que, pelo menos antigamente, era bastante comum que se homenageasse monumentos históricos, principalmente igrejas. Então a couraça dos bois refletia esse hábito com frequência.

 

Os bois confeccionados para a brincadeira do mestre Teodoro já estamparam bandeiras (como a do Maranhão e a do Distrito Federal), inúmeras homenagens a santos e figuras maranhenses importantes, igrejas, palácios, símbolos do catolicismo e até o estádio Mané Garrincha. Estão expostos e eternizados no Museu Vivo do Boi de Seu Teodoro, lá no Centro de Sobradinho, para quem quiser ver, juntamente com acessórios, instrumentos utilizados no sotaque da Baixada e as indumentárias de cada figura do enredo do Bumba Meu Boi do mestre maranhense.

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Os bois, instrumentos e indumentárias dos bailantes estão expostas no Centro de Tradições Populares de Sobradinho.

Fotos: Giovanna dos Santos

Os personagens da brincadeira

Alguns personagens tradicionalmente interagem com o Boi, protagonista da história, durante as brincadeiras. É necessário que alguém fique debaixo da estrutura do animal para movimentá-lo e interpretá-lo. Esta pessoa é chamada de Miolo do Boi. Em meio a rodopios, ele brinca com o Vaqueiro, trajado com uma roupa de veludo e chapéu de pena.

 

No meio da roda também estão os bailantes, portando as ornamentadas vestes apelidadas de peitilho e tanga, e as índias, cobertas de grandes penas de aves no peito, mãos e pernas. Hoje, a responsável por produzir as roupas de índia no grupo de Teodoro é Silvia Regina, filha do amo do Boi. É importante ressaltar que as índias exercem um grande papel no enredo do Bumba do Maranhão devido à história que originou a brincadeira. Afinal, foi um pajé indígena que ressuscitou o Boi. Os povos originários do Brasil são devidamente representados na celebração. 

 

Não podiam ficar de fora Pai Francisco e Mãe Catirina, personagens presentes em todos os sotaques dos bois do Maranhão. A intérprete de Catirina geralmente enfeita-se com um colorido vestido e ornamento na cabeça, ao passo que o de Pai Francisco é visto com uma espécie de máscara de pano preta. O amo exibe um enorme chapéu de pena e miçangas bordadas, além do seu próprio peitilho e tanga.

 

Por fim, uma importante figura entra em cena para interagir com o protagonista, as crianças e adultos espectadores. O Cazumbá é tido como o protetor da floresta e guardião do Boi, sendo um dos elementos principais da brincadeira. Tamá esclarece que, por mais que o personagem utilize uma máscara que ilustra o semblante de algum animal não identificado, e que acaba amedrontando algumas pessoas dada a sua aparência, o Cazumbá existe para proteger a brincadeira e seu misticismo ritualiza a vida, a morte e a ressurreição do Bumba.

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Fotos: Divulgação / Instagram @boideseuteodoro

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Cazumbá, Bumba meu boi, brincantes do Boi e crianças em festa do Boi de Seu Teodoro.

Foto: Divulgação / Instagram @boideseuteodoro

A morte do Boi

O último grande festejo do ano culmina no ritual de morte do Boi, em lembrança ao trágico destino do animal pelas mãos de Pai Francisco segundo a lenda urbana. Por mais mórbido que o evento possa parecer, a atmosfera é construída para ser mais um momento de brincadeira e celebração cultural.

 

No sábado, durante a “festa da matança do gado”, o Boi foge do terreiro por volta da meia noite e o Vaqueiro sai a procura do animal. O local do esconderijo é previamente combinado entre o presidente do Boi e o Miolo. É a partir desse momento que os brincantes começam a adornar o mourão, um grande galho no qual o Boi será amarrado no encerramento do ritual. Do grosso galho principal até as pontas das ramificações, papeis de seda coloridos vão sendo colados madrugada adentro, até o dia seguinte.

 

Não há data fixa para a realização dessa etapa, podendo variar entre os meses de agosto a outubro. Neste ano de 2024, por exemplo, os brincantes finalizavam os preparativos em uma manhã de domingo, 25 de agosto, para a morte do Boi que aconteceria naquela mesma tarde. Tamá Freire, Silvia Regina e as demais mulheres da equipe ficaram ao encargo do mourão, enquanto os homens andavam pra lá e pra cá no Centro de Tradições Culturais de Sobradinho carregando materiais e instrumentos, sob a supervisão de Guará Freire.

 

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​​​​​Por volta das 16h, o amo reúne o batalhão responsável por alocar o mourão no descampado onde o Boi será sacrificado e, ao som de uma toada, pergunta ao vaqueiro onde estava o bicho. O vaqueiro então traz o Boi e o Miolo faz uma dança de resistência ao lado de Pai Francisco e do Cazumbá, que tentam impedir o sacrifício. Após muitas tentativas o Vaqueiro consegue dominar e laçar o Bumba, prendendo-o ao mourão para que não escape novamente.

 

Um garrafão de vinho e uma bacia são preparados para auxiliar na encenação do sangramento do animal no momento em que é cortado. “Já participei desse ritual tantas vezes, e todo ano eu vejo o pessoal que está assistindo se emocionar muito. É de arrepiar mesmo”, conta Tamá. 

 

Ao passo que a criatura finalmente tem seu fim, o ritual é finalizado com mais ladainhas e o bendito de São João ao pé do mourão. A tradição do Bumba Meu Boi também conta com um processo de ressuscitação, mas não é todo o grupo que opta por fazê-lo, ainda mais no dia em que o Boi é sacrificado.

 

Com o fim das festividades encerra-se o ciclo daquele couro e, teoricamente, não se pode mais brincar com aquele Boi. Mas o grupo do mestre Teodoro, por meio do projeto cultural Tradição e Educação, tem há anos a oportunidade de levar o Boi para brincar nas escolas da rede pública de ensino espalhadas pelo DF e mostrar um pouco do folclore brasileiro às crianças, ou até mesmo convidá-las à sede do Boi de Seu Teodoro lá em Sobradinho. 

 

Palestras são ministradas e o ritual de ressuscitação do Boi sempre faz muito sucesso entre os pequenos, de acordo com Tamá. “Para o Boi ressuscitar, ele deve urrar. Para isso a gente usa o tambor onça, um instrumento especificamente para as brincadeiras de Bumba Meu Boi. Ele tem uma corda que, com a fricção, faz um barulho igualzinho a de um animal. Quando a gente toca esse tambor as crianças ficam perdidinhas procurando de onde vem aquele som e gritam de alegria quando o Boi volta a se mexer.”

Preparativos do mourão para a 'morte' do Boi.

Vídeo: Giovanna dos Santos

A presidência de Guará

Administrar e divulgar um projeto da magnitude do Boi de Seu Teodoro exige recursos, contatos e experiência. É por isso que, desde meados dos anos 2000, Teodoro Freire já compartilhava seus conhecimentos e contatos de figuras influentes no cenário da cultura brasiliense com o filho caçula, Guarapiranga.

 

Em 2009, o mestre surpreendeu a todos do grupo ao abdicar do posto da presidência do Centro de Tradições Populares de Sobradinho e da diretoria representativa do Boi, passando as funções para Guará. Este cresceu brincando o boi ao lado dos pais, irmãos e irmãs, então sempre soube como a brincadeira funcionava. O que o menino não esperava era que, além de brincante, fosse assumir também as responsabilidades do criador dessa manifestação cultural no futuro.

 

Guará pondera sobre o porquê de o pai ter escolhido justamente o mais novo de 11 filhos para encarregar-se de tal posição. “Na verdade meu pai estava preparando a Tamá. Mas ela casou, teve filhos, foi viver a vida dela, sem nunca abandonar o grupo”, relembra o caçula de Teodoro. “Meus outros irmãos e irmãs também participavam dos festejos, mas não com a mesma frequência que eu. Imagino que seja por conta do afastamento da maioria dos filhos e da influência que ele tinha sobre mim que ele me escolheu.”

 

O presidente e diretor do Boi vai atrás de verba e recursos para a manutenção das festas e do CTP, busca apoio do governo para o projeto via emenda parlamentar, inscreve o projeto em editais de cultura, auxilia na coordenação da equipe nos bastidores das apresentações, fecha parcerias com outros grupos, entre outros. 

 

As tarefas certamente são muitas, mas não garantem renda aos membros do Boi de Seu Teodoro pelo ano inteiro. Essa realidade faz com que todos busquem uma segunda fonte de sustento. Hoje Tamá é aposentada. Guará trabalha como motorista de aplicativo. Silvia Regina realiza trabalhos voluntários com bordados das indumentárias e na ornamentação das festas, mas nem sempre recebe por isso. O próprio mestre Teodoro tinha uma segunda ocupação, trabalhava na UnB. Dizia que era o lugar em Brasília em que queria estar, ao lado de professores e alunos, sem falar que foi a universidade que viabilizou boa parte das parcerias que o maranhense já conquistou para o seu Boi.

Fonte: Instagram / @boideseuteodoro

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Fonte: Instagram / @boideseuteodoro

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O legado de Teodoro

“Meu pai entregou a vida para esse Boi. Dos 91 anos que viveu, praticamente 60 deles foram dedicados a esse trabalho.”
                                                                                                                  - Tamatatíua Freire

Teodoro Freire morreu na madrugada de 15 de janeiro de 2012. Movimentou toda uma comunidade, ajudou na geração de empregos para migrantes nordestinos e foi líder de uma das mais expressivas lutas de resistência da cultura popular na nova capital brasileira.

 

Em razão do valor histórico e artístico que o Boi de Seu Teodoro possui, a festividade ganhou destaque nacional e internacional, sendo registrada como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial em 2004 no Livro de Celebrações do Distrito Federal, além de ser oficialmente reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Dois anos depois, o mestre maranhense recebeu o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural pelo então ministro da cultura, Gilberto Gil. Em 2011, um ano antes de seu falecimento, recebeu também os títulos de Cidadão Honorário da cidade e de Mestre de Notório Saber, este segundo cedido pela Universidade de Brasília.

 

“Meu pai era doido para ver acontecer os 50 anos do Boi, mas infelizmente ele não conseguiu. Tinha um ano de falecido quando o seu Bumba completou 50 anos”, lamenta a filha Tamá. “Foi duro ter que estar aqui no Centro na época porque, quando você olha em volta, tudo lembra ele. Você sente a presença dele nesse lugar”.

 

Por mais que Teodoro não tenha conseguido participar do quinquagenário do Boi, o mestre recebeu da família e da comunidade que mobilizou diversas homenagens ainda em vida. Tamá relembra que, em 2009 e 2010, o CTP de Sobradinho recebeu um encontro de grupos de Bumba Meu Boi vindos diretamente do Maranhão para celebrar o trabalho do pai. 

 

“Teve também uma orquestra dos meninos de Ceilândia, teve catira, maracatu, então a gama que faz a cultura popular tava toda se apresentando para ele na homenagem. Nossa, foi uma festa linda”, conta Tamá.

 

Para o aniversário de 91 anos de Teodoro em 2011, que viria a ser seu último, Guará Freire atendeu ao desejo do pai de organizar uma enorme festa para a comunidade de Sobradinho, a turma de amigos e professores da UnB com quem o mestre conviveu e diversos artistas culturais espalhados pela cidade. A festa durou 24h, com direito até a apresentação de instrumentistas do Clube do Choro, convidados pelo filho caçula.

 

E assim segue até hoje a família e os demais brincantes do Boi de Seu Teodoro, em meio ao esforço pela preservação das tradições culturais locais e na garantia de que a herança do mestre seja compartilhada e apreciada pelas gerações futuras.

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Revista Mosaico por Giovanna dos Santos

Professor orientador: Luiz Claudio Ferreira

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