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SAMBA COM RITMO BRASILIENSE

Afilhada da Portela, a escola de samba campeã dos carnavais do DF orgulha e mobiliza a comunidade da Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro

Por Giovanna dos Santos

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Foto: Divulgação

A popularização sem precedentes do nosso samba para muito além das fronteiras do Brasil é motivo de orgulho, tamanha é a riqueza cultural do ritmo e a sua contribuição para o universo da música. Mas e o que acontece dentro das fronteiras? Existe espaço para o samba na capital do país que o originou?

 

A resposta é sim, e muito. O samba evoluiu e se dividiu em distintas vertentes, dos batuques ancestrais africanos aos enredos de sucesso que embalam as escolas de samba. E dentre as escolas de samba que Brasília possui, uma delas tem recebido holofotes de abrangência nacional, seja pela comunidade que mobiliza ou pelos prêmios de carnaval que acumula desde a sua fundação: a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc).

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Foto: Giovanna dos Santos

O início e a comunidade

A herança musical que as comunidades afro-brasileiras do Rio de Janeiro nutriram desde o início do século XX, culminou na migração do ritmo que é um dos mais importantes fenômenos da cultura do país para a recém-inaugurada capital. Em 21 de outubro de 1961, a Aruc abria as portas no Cruzeiro. A comunidade, na época, chamava-se Bairro do Gavião, o que justifica a escolha da ave estampada na bandeira.

O Cruzeiro era considerado o bairro dos cariocas. E onde tem carioca... tem samba. A Aruc foi estabelecida por um grupo de moradores da região como um espaço de promoção de lazer, esporte e cultura, com um departamento de carnaval e um departamento esportivo. Tanto a escola de samba implementada na agremiação quanto os times de futebol e handebol viriam a conquistar diversos troféus nos anos que viriam.

 

Construída no terreno do Clube Unidade de Vizinhança do Cruzeiro, a quadra poliesportiva e o pequeno salão viviam cheios de gente e chamavam a atenção dos moradores e visitantes que passavam por lá. Foi a curiosidade de Mauro Rocha que o levou a frequentar a Aruc com os amigos. Natural do Piauí, Mauro chegou a Brasília em 1977, aos sete anos de idade. Morou primeiro no Guará, mudando com os pais para o Cruzeiro em 1981.

 

“Quando eu tinha por volta de 11 anos, passei a jogar futebol todo dia com meus amigos na quadra da Aruc. Não precisava nem ser sócio para estar lá, a comunidade sempre foi muito aberta e convidativa”, explica Mauro, hoje um dos integrantes do conselho fiscal do clube.

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Primeiro ensaio da Aruc, em 1961.

Geraldo, Mangueira, Messias, Nicodemus, Euclides Santana e D. Jandira.

Foto: Acervo Aruc

Devido ao grande envolvimento dos membros com a agremiação por conta do carnaval, o samba atraía o garoto para aquele lugar, por mais que ele não tivesse habilidades com dança e música. Quem não participava como membro da escola de samba ou de time de esporte, tinha a possibilidade de vivenciar o clima contagiante da Aruc como espectador dos shows de música que aconteciam no local. E Mauro era um frequentador assíduo desses shows.

 

“Eu não era envolvido com o samba, mas sempre assistia a shows maravilhosos no clube. Pude conhecer tanta gente famosa e influente da música popular brasileira, a Aruc sempre foi palco de grandes artistas”, relembra Mauro Rocha. “Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Almir Guineto, vi esses e outros cantores e compositores deixarem sua marca lá.”

Os departamentos e os prêmios

Ao passar pelos portões de entrada, o visitante se depara com uma quadra poliesportiva recém-reformada à direita (o espaço passou por melhorias e foi reaberto no fim de setembro deste ano), e um amplo galpão dividido por salões à esquerda, que servem tanto como o ponto de encontro dos passistas e instrumentistas para os ensaios da bateria, quanto para receber artistas para apresentações. E uma dessas salas guarda os maiores tesouros materializados da história do clube.

 

Os departamentos de carnaval e de esportes acumulam juntos uma enorme quantidade de prêmios, orgulhosamente expostos na salinha que hoje é usada como museu. Junto aos troféus e medalhas estão preservadas manchetes de jornal que destacam essas conquistas, paineis que contam a história da associação e o certificado de registro, concedido pela Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal em 2009, da Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro como Patrimônio Cultural Imaterial do Distrito Federal.

 

Ao transitar pelo museu, fica evidente o destaque e reconhecimento que a escola de samba do clube já recebeu ao longo dos anos em atividade, e como a Aruc foi uma das principais entidades responsáveis por colocar o carnaval na história de Brasília. Dos desfiles que acontecem Brasil afora, a escola é a maior campeã dentro da própria unidade federativa.

 

“A Aruc possui 31 prêmios de primeiro lugar, é a campeã no Distrito Federal e a que mais possui títulos no Brasil inteiro”, explica Moacyr Oliveira Filho. Com 71 anos, “Moa” é um dos grandes nomes da presidência da agremiação, tendo permanecido na função por muitos mandatos. O atual presidente é Robson Oliveira Silva.

 

Para se ter uma ideia, a Aruc tem mais títulos até do que a sua escola-madrinha, a velha conhecida Portela do Rio de Janeiro, e a Vai-Vai, maior escola de samba de São Paulo. Enquanto a Portela carrega 22 títulos em desfiles de carnaval do estado carioca, sendo consagrada como uma das escolas mais populares do país, a Vai-Vai conta com 15 troféus pelo carnaval paulistano.

 

Moa destaca que, por muitos anos, a escola cruzeirense esteve invicta em primeiro lugar. Hoje, está empatada com a Sociedade Recreativa e Cultural Os Rouxinóis, de Uruguaiana, município no Rio Grande do Sul e fronteiriço com o Uruguai. Os Rouxinóis também conquistaram 31 títulos na sua respectiva unidade federativa.

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Foto: Giovanna dos Santos
Foto: Giovanna dos Santos
Foto: Giovanna dos Santos
Foto: Giovanna dos Santos

Crise no carnaval brasiliense

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Foto: Joel Rodrigues / Agência Brasília

Eu sou um rio

transbordando de amor

Eu sou Aruc,

sou um vencedor (bis)

 

Voa gavião, 

Leva na garra o pandeiro

Mostra pra esse povo

Que o teu samba é verdadeiro

 

Teu azul e branco

veio lá de Madureira

Enxuga teu pranto,

que eu não vim pra brincadeira

 

Fui abençoada

pelo braço de Natal

Sou glorificada campeã

No futebol e no carnaval

 

Tenho alma de guerreiro

No gramado, um lutador

Vou soltar o meu grito é gol!

Por isso é que Cruzeiro eu sou.

O hino da Aruc, de autoria de Moa e Siqueira do Cavaco, reflete bem as qualidades de coragem, determinação e resistência pelas quais a história da associação é direcionada. O que culmina em esforços dos membros para manter as atividades do clube vivas, mesmo diante de inevitáveis adversidades. Acontece que a Aruc já vivenciou uma dura crise no seu carnaval, e essa realidade foi compartilhada com as demais escolas de samba do DF.

 

“Infelizmente, a Aruc teve três derrotas consecutivas nos desfiles de carnaval que participou nos anos de 2012 a 2014. E depois disso, as apresentações passaram por um longo hiato que só foi acabar em 2023”, explica Jannsen Pimentel, 47 anos, diretor do departamento de carnaval e vice-presidente da escola de samba do clube.

 

A agremiação foi classificada em segundo lugar nos carnavais brasilienses nesses três anos em questão e, logo depois, enfrentou dificuldades que a obrigaram a deixar os desfiles de lado por oito anos, o maior hiato da sua história. Os pais de Jannsen fazem parte do grupo de fundadores da Aruc, o que permitiu que o brasiliense estivesse imerso no núcleo do samba do clube desde jovem. Sendo assim, o atual diretor de carnaval se lembra bem dos motivos burocráticos por trás da crise das escolas de samba de Brasília.

 

“O governador que iria assumir em 2015 (Rodrigo Rollemberg) havia garantido os desfiles de carnaval ainda em 2014, antes das eleições. As escolas de samba começaram a se organizar, mas quando ele assumiu o posto, disse que os desfiles não poderiam mais acontecer por conta de dívidas governamentais”, esclarece Jannsen Pimentel.

 

“Só que o cancelamento dos desfiles foi mantido durante todo o mandato dele, e isso foi desanimando muita gente. Nada mudou com o governador seguinte (Ibaneis Rocha), sem falar na pandemia de Covid-19 que se seguiu. Foi uma grande perda pra Aruc, que vive principalmente do carnaval.”

 

Segundo Jannsen, foi somente em 2021 que a subsecretaria de Cultura do DF voltou a procurar as escolas de samba e deu o pontapé inicial para que o samba voltasse para a cena cultural da capital. Os desfiles voltaram em 2023, mas ao invés de acontecerem tradicionalmente no mês de fevereiro, foram viabilizados somente em junho.

 

Daniel Leonardo, mestre da bateria Carcará da Aruc, também vivenciou a situação de perto e conta que o carnaval atrasou devido a alguma complicação burocrática entre a Secretaria de Cultura e o Tribunal de Contas, gerando um atraso no repasse de verba. “A gente trabalha muito com a verba que o governo repassa para as escolas de samba. Em 2023, recebemos a verba, mas tardiamente. Então o desfile foi acontecer só em junho”, explica Leo.

 

Felizes de retornarem às atividades carnavalescas que tanto amam, mas descontentes com o frio que faz em Brasília em junho - importante lembrar que as fantasias dos dançarinos passistas não são nem um pouco favoráveis ao clima frio - e com a competição do interesse do público com as festas de São João, os membros da agremiação desfilaram e comemoraram o retorno do carnaval da Aruc na Torre de TV.

 

O surpreendente é que, mesmo com um hiato de oito anos e todas as condições adversas que se seguiram, a Aruc segue como a escola de samba que mais foi eleita campeã dentro da própria unidade federativa no Brasil inteiro, empatada com Os Rouxinóis de Uruguaiana. Sem falar no compromisso em manter outras atividades em funcionamento apesar da ausência dos desfiles nas ruas.

 

A Aruc tem aulas da bateria Carcará e de samba no pé, shows, bailes, feijoadas e outros eventos comemorativos. E mesmo com a ausência dos desfiles tradicionais, continuou se apresentando em blocos de carnaval da cidade ou em eventos promovidos pelo GDF. A associação nunca deixou de viabilizar oportunidades de manifestar a cultura do samba e dos esportes, nem de mobilizar a comunidade fiel que conquistou.

“Escola de samba não existe só para desfilar, ela tem que existir o ano inteiro. Manter uma ligação forte com a comunidade e oferecer eventos, cursos e atividades com frequência. E isso a Aruc sempre fez muito bem.”
                                                                                                                     - Moacyr Oliveira Filho

Música multifacetada e a bateria

Após o samba carioca firmar-se definitivamente no hall da música brasileira, tornou-se uma expressão cultural multifacetada e fragmentou-se em distintas vertentes ou subgêneros, cada um com determinadas especificidades de significado, ritmo, composição e interpretação. Hoje o Brasil conta com uma rica leva de sambas: samba de terreiro ou samba de quadra, samba canção, samba de roda, partido alto, samba de breque, samba-enredo e até a bossa nova e o pagode, que hoje são considerados por muitos como estilos musicais independentes.

 

A ágil percussão das baterias de escola de samba, que pedem por um rápido samba no pé, é bastante característica do subgênero samba-enredo. Nessa vertente musical, preza-se por escolher um determinado tema que fundamentará as apresentações nos desfiles de carnaval. Ou seja, as escolas devem escolher um enredo para aquele ano, os compositores então farão o samba-enredo, cuja letra se baseará na narrativa escolhida, e a escola homenageará esse tema nas performances de carnaval com a composição.

 

O departamento de carnaval que Jannsen Pimentel coordena reúne todos os membros que compõem a escola de samba, como os passistas, instrumentistas da bateria, porta-bandeira e o pessoal responsável pela escolha do enredo. E quem está à frente da diretoria musical é Daniel Leonardo.

“Eu comando os ensaios e as apresentações da bateria nos desfiles, além de ministrar aulas na escolinha que tem na Aruc”, diz o mestre de bateria. “Os ensaios com os membros definitivos são às terças, já a escolinha acontece às quartas. É a oportunidade que a gente dá para quem quer aprender a tocar algum instrumento de percussão e, no futuro, tornar-se um instrumentista da nossa bateria”.

Ensaio da bateria Carcará da ARUC, comandado por Janssen Pimentel.

Vídeo: Divulgação / Instagram @aruc.oficial

Segundo Leo, qualquer pessoa pode participar da escolinha, aberta à toda a comunidade. Lá o pessoal tem contato com os principais instrumentos comuns às escolas de samba, como surdo, caixa, repique, tamborim, chocalho, agogô, cuíca. A depender do enredo naquele ano, a bateria pode acabar implementando instrumentos adicionais para complementar as músicas, como já foi o caso do prato, da lira e do timbau.

 

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Seguindo a missão de manter o clube em atividade durante o ano todo, os instrumentistas levam a bateria Carcará para muito além do carnaval. “Fazemos apresentações em casamentos, aniversários, eventos governamentais de natureza social, como inauguração de praças e quadras esportivas e ações de solidariedade em hospitais, por exemplo. Como é um show a parte do carnaval, não ficamos restritos ao samba-enredo, podemos explorar um repertório mais variado”, conclui o mestre Leo. 

 

Os membros da agremiação apelidaram de Aruc Samba-Show a união de instrumentistas da bateria Carcará, intérpretes, passistas, casais de mestre-sala e porta-bandeira que comparecem a esses eventos e apresentações ao longo do ano.

Daniel Leonardo (ao centro) com a ARUC Samba-Show.

Fonte: Divulgação

Samba no pé e diversidade

Onde vai a bateria, vão os passistas. O brasiliense Davis de Sousa, de 39 anos, atua como professor de samba na Aruc, ministrando um pequeno curso de samba no pé para quem deseja aprender do zero, e convidando os mais experientes a compor o grupo definitivo de dança.

 

“Eu comecei minha carreira no gênero com o samba de gafieira, que é aquele que se dança a dois”, conta o dançarino. “Depois de um tempo, passei a dançar samba no pé, esse que usamos no carnaval. Quando você escuta esse ritmo acelerado, que exige um movimento bem ágil das pernas, é o samba no pé que coreografamos para acompanhar o samba-enredo.”

Passistas e outros membros da agremiação da ARUC em desfile de rua.

Vídeo: Divulgação / Instagram @aruc.oficial

Davis já passou por diferentes estilos de dança ao longo da juventude, tendo se aventurado no hip-hop e break dance até os 22 anos de idade. Foi quando o brasiliense resolveu apostar no samba, interesse que nutria enquanto ainda morava em Ceilândia. “Mas acontece que a música no DF é bem setorizada, eu precisei vir para a região central de Brasília para aprender a sambar. Asa Sul, Asa Norte e principalmente o Cruzeiro são os principais lugares para quem procura samba, pela influência dos cariocas nesses bairros. Em Ceilândia eu só ouvia forró e sertanejo”, destaca o sambista.

 

Antes de se afiliar a Aruc, Davis participava de uma companhia de samba de gafieira, e passou a integrar a agremiação cruzeirense devido ao convite de uma amiga que era coordenadora de passistas no clube. Com o tempo, a moça teve que se ausentar da função, passando o cargo para Davis.

 

Qualquer pessoa que tenha interesse pode dar uma chance ao aprendizado do samba no pé. Davis e a equipe da Aruc dão as boas vindas ao público sem qualquer distinção, e o professor enfatiza a diversidade da turma: “O perfil das pessoas que nos procuram são principalmente mulheres e a comunidade LGBTQIA+. Homens estão em menor número, mas o meu passista mais animado é um senhor de 80 anos. A idade é o fator que mais varia.” 

 

“Também incentivamos pessoas com todos os tipos de corpo a dançar com a gente, adaptamos as aulas conforme as habilidades e limitações de cada um. Por limitações, me refiro tanto às físicas quanto às intelectuais, pois também temos passistas que são PCD. Na turma há dois membros com síndrome de down, por exemplo”, explica Davis.

A rainha da bateria

Não há como falar em samba no pé da Aruc sem falar em Verônica Amaral. A empresária de 31 anos foi consagrada rainha da bateria Carcará da agremiação no ano passado e, desde então, representa a escola em diversos desfiles, eventos sociais e de outras escolas de samba pelo Brasil. 

 

Além desse importante papel, Verônica se envolve com o apoio a iniciativas culturais e comunitárias na Aruc, além de auxiliar na organização e divulgação das atividades do clube por meio da administração das redes sociais, promovendo os eventos e deixando o público informado de tudo o que acontece na entidade.

 

O envolvimento de Verônica com a dança começou aos 6 anos por influência da mãe, que era professora de dança do ventre. Sempre apaixonada por essa arte, acompanhou a mãe em 2019 em um workshop de samba no pé. Desde então, nunca mais parou.

 

“A partir desse momento, me encantei e comecei a fazer aulas regulares. Em 2020, fui convidada a ser professora e coreógrafa de samba no pé no grupo de danças brasileiras Areté Brasil, onde continuo até hoje, fazendo o que amo”, Verônica relembra a trajetória no samba. “Aprendi a ‘trocar o pneu com a carroça andando’, o que foi uma experiência fantástica para consolidar ainda mais minha técnica.”

 

“Em 2023, recebi o convite para coordenar a Ala de Passistas do GRES Bola Preta de Sobradinho e também me tornei passista da Unidos do Varjão, participando dos desfiles das escolas de samba de Brasília”. Foi assim que, em novembro daquele mesmo ano, foi nomeada rainha da bateria da Aruc, através do convite do mestre Daniel Leonardo.

 

“Sinto que, de maneira inconsciente, honro minha avó materna, que era fã de Clara Nunes e Beth Carvalho, minhas cantoras e compositoras de samba prediletas. Descobri recentemente que ela tentou ser dançarina profissional no Rio de Janeiro, o que me fez sentir ainda mais conectada a essa tradição e cultura. O samba se tornou uma extensão da minha identidade e uma forma de expressar minha paixão pela dança e pela nossa rica herança cultural”, reflete Verônica Amaral.

Preservação documental e a Velha Guarda

Em 2021, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro completou 60 anos de existência. O então presidente da entidade, Rafael Fernandes de Souza, compilou as conquistas e o legado da Aruc em um almanaque a ser publicado ainda naquele ano. Porém, devido a restrições da pandemia de Covid-19, o livro foi lançado somente em 2023.

 

O Almanaque de Diamante é um projeto para comemorar o Jubileu de Diamante da agremiação, ou seja, uma homenagem ao seu sexagenário. O trabalho de documentação da trajetória histórica do clube para preservá-la e eternizá-la foi realizado por meio do Termo de Fomento com o Instituto Latinoamerica e Ministério do Turismo, e contou com a produção da ABÈBÈ Produções e apoio da Academia Cruzeirense de Letras e do Instituto Aruc Cultural.

 

Duas das principais contribuições documentais que o almanaque deixou foram um resgate ao período de ouro da Aruc, quando a escola de samba foi campeã dos desfiles de carnaval oito vezes consecutivas, de 1986 a 1993, e também a construção de uma nostálgica linha do tempo em memória aos que constituem a velha guarda da associação.

 

Hoje em dia, boa parte da primeira geração de membros que trabalhava na Aruc se afastou por motivos pessoais. Outros já faleceram. Mas alguns ainda fazem questão de frequentar o clube e, enquanto a idade permite, participar ativamente das atividades da maneira que podem.

Amigos de longa data e conterrâneos do Rio de Janeiro, Antônio Soares e Wellington Campos - o segundo responde pelo apelido Vareta - viram a Aruc se erguer em meio à comunidade carioca que carinhosamente os acolheu desde o primeiro aniversário de Brasília, processo que marcou a juventude de Soares e a infância de Vareta. Soares embarcou sozinho para a capital aos 24 anos para trabalhar, já Vareta chegou com a família, com apenas 6 anos.

 

A primeira grande lembrança de Vareta na Aruc foi o ano em que a escola de samba foi desclassificada por quantidade insuficiente de componentes, em 1974. “O desfile tinha que ter, no mínimo, oitenta integrantes, e nós estávamos com cinquenta e três”, lembra Wellington Vareta. “Então o presidente Nilton de Oliveira, também conhecido como Sabino, se organizou para tirar a ARUC desta crise. Ele reuniu o pessoal da velha guarda e da jovem guarda da comunidade. No ano seguinte, sabe com quantas pessoas desfilamos? Mil e duzentas!”

 

Nilton de Oliveira (Sabino), conforme consta no Almanaque de Diamante dos 60 anos da Aruc, é considerado pela agremiação como o maior presidente da história da entidade, por ter trazido uma nova e enorme geração de cruzeirenses para lá. Quando isso aconteceu, Vareta tinha 15 anos, há 4 anos como membro da bateria mirim.

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Wellington Campos (Vareta) e família em março de 1961, quando chegaram em Brasília.

Foto: Divulgação / Instagram @varetadf

Memórias de dois amigos

Enquanto os anos passavam e a experiência dos dois cariocas na escola da Aruc aumentava, ambos começaram a deixar suas marcas registradas naquilo que tinham mais afinidade: a composição de samba-enredo. Soares, hoje com 87 anos, e Vareta, com 68, foram responsáveis pela escolha de diversos enredos para os desfiles da Aruc enquanto componentes da diretoria cultural, e mais ainda pela composição de sambas-enredo de sucesso e que ajudariam a trazer prêmios ao clube.

 

“Eu já cantei no programa do Ary Barroso, já fui na TV Tupi, tudo lá no Rio. Quando cheguei em Brasília, tive a oportunidade de fazer várias gravações, de mostrar a minha personalidade na música”, orgulha-se Soares. “A Aruc me recebeu de braços abertos, gravei várias marchinhas que marcaram o carnaval de Brasília”.

 

Soares é um dos primeiros sambistas da história de Brasília. Tanto é que os organizadores do Pacotão, bloco de carnaval tradicional de Brasília cujo um dos fundadores é Moacyr de Oliveira Filho, fizeram um disco com a biografia de Soares e o presentearam como forma de homenageá-lo e agradecer pelo trabalho do carioca: “Eu chorei tanto, não mereço aquilo. Era um disco inteiro contando a minha história, não há preço que valha aquele presente pra mim.”

 

A vivência de Vareta na cena do samba desde criança também o permite fazer a diferença no carnaval nacional. O sambista atua como jurado da comissão de frente nos carnavais de São Paulo, que julga tanto a criatividade e sintonia das apresentações quanto o figurino e indumentária da equipe.

 

Os dois amigos da velha guarda relembram juntos algumas histórias que viveram: “A gente saía da Aruc, pegava o último ônibus que passava na W3 e ia de madrugada até a Rádio Alvorada para falar de alguma programação que ia ter no clube ou dos desfiles que a nossa escola de samba iria participar”, conta Vareta. “Aí uma vez o Soares fez um samba que dizia assim:”

Quantas vezes eu levantei de madrugada 
pra ir à rádio dar a minha alvorada, 
para dizer que azul e branco vai desfilar. 
Em matéria de samba, o Cruzeiro é em primeiro lugar. 
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Antônio Soares e Wellington Campos (Vareta) na Aruc, outubro de 2024.

Foto: Giovanna dos Santos

“Depois de dar o nosso recado, a gente pegava de volta o primeiro ônibus, que passava às 5 da manhã. Descíamos o Cruzeiro pra passar na padaria, os padeiros já estavam fazendo pão enquanto escutavam a gente na rádio e guardavam uma leva quentinha para quando a gente aparecesse. Ô tempo bom, muita história, muita história”, diz Vareta, saudoso.

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Vareta (à direita) no carnaval da Aruc em 1975.

Foto: Acervo Aruc

O samba é resistência

Por fim, ao mencionar figuras influentes da velha guarda do samba dentro e fora de Brasília, não há como não lembrar de Moacyr Oliveira Filho, conhecido nas escolas de samba como Moa. Hoje com 71 anos, Moa foi presidente da Aruc por muitos mandatos, responsável também pela composição de sambas-enredo e pela fundação do bloco de carnaval brasiliense Pacotão - aquele que homenageou a história de vida de Soares em um CD.

 

Nascido no bairro do Brás, na região leste de São Paulo, Moacyr é amante do samba e do carnaval desde menino. De frequentador das pequenas matinês infantis, passou a frequentar a Vai-Vai, uma das maiores agremiações paulistas, e recorda que o primeiro samba-enredo que lhe chamou a atenção foi o Lendas e Mistérios da Amazônia, de autoria da Portela. A partir daí, começaria a trilhar um caminho que o tornaria ‘portelense’ de coração.

 

Em 1972, ele estava estudando na Universidade de São Paulo (USP) e, juntamente com alguns colegas universitários, organizou um evento em comemoração aos 50 anos da Semana de Arte Moderna na Fundação Getúlio Vargas. Para a alegria do jovem estudante, um dos shows que fizeram parte da programação foi o de Paulinho da Viola com os membros originais da primeira geração da Portela. Não é difícil de se imaginar que a admiração do garoto para com a escola de samba carioca cresceu ainda mais.

 

Militantes secundaristas de escola de samba, a maioria ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Moa e os demais companheiros que ajudaram a viabilizar o evento foram presos por três meses pelo DOI-CODI de São Paulo, órgão de repressão política a indivíduos que representassem ameaça à segurança do regime ditatorial. 

 

“Na prisão, nos raros momentos de tranquilidade, eu e o restante do pessoal das seis celas que haviam lá, inventamos de criar um programa de rádio para nos distrair”, conta o paulistano. “Cada cela ia cantando as músicas da velha guarda da Portela à noite, quando a situação não estava tão pesada. Os torturadores ficavam enlouquecidos, porque viam isso como uma forma de resistência. E era mesmo. O samba também é resistência.”

 

Passado esse momento tortuoso, Moacyr estava trabalhando como jornalista na Folha de S. Paulo e, em 1977, foi transferido para Brasília. A estadia que era para durar seis meses estendeu-se por quase cinquenta anos. Foi assim que passou a frequentar a famosa escola de samba cruzeirense na qual já havia ouvido falar antes. Com a fundação do bloco Pacotão, um dos colegas fundadores que já era frequentador da Aruc chamou Moa para conhecer mais da agremiação. Pelos próximos anos, o sambista transitaria por diversas áreas administrativas do clube, de diretoria cultural à presidência geral.

 

“Em 1994 não houve desfile da Aruc em Brasília, então fui para o Rio e desfilei pela primeira vez na Portela. Desde então, eu desfilo com eles todos os anos. Virei sócio”, esclarece Moacyr. “Ajudei a fundar o Consulado da Portela no Distrito Federal com sede na própria Aruc, já fui presidente deste consulado e, nesse processo, também fundamos a Federação Nacional das Escolas de Samba (FENASAMBA), que é uma entidade que reúne mais de noventa ligas de todo o país que representam mais de mil escolas de samba. Eu sou secretário geral da FENASAMBA.”

Fotos: Arquivo pessoal

Brasília, fenômeno da cultura convergente

“Brasília é uma cidade maravilhosa. Graças a Deus que eu vim pra cá.”

- Antônio Soares
“Eu não sou mais carioca, sou cariense. Carioca com brasiliense.”
 
- Vareta

A presença do samba em Brasília, herança carioca orgulhosamente manifestada por pessoas que fizeram e fazem a diferença no contexto cultural da capital, como Soares e Vareta, é refletida nas falas e trajetórias dessas pessoas em prol do objetivo de manter essa vertente da identidade brasileira viva na cidade.

 

Soares escreveu diversas marchinhas sobre cidade candanga ao longo da carreira como compositor, e orgulhosamente se lembra de todas as letras para entoá-las na primeira oportunidade.

Vídeo: Giovanna dos Santos

“Brasília é um ponto de convergência cultural, onde pessoas de diversas partes do Brasil se encontram, trazendo suas influências e tradições. Isso enriquece a cena do samba na cidade, criando um espaço onde novas formas de expressão e inovação podem florescer” diz a brasiliense e rainha da bateria da Aruc Verônica Amaral.

 

Mais do que um gênero musical ou estilo de dança, o samba é um verdadeiro fenômeno social que reúne pessoas, celebra histórias e resgata tradições. É só observar a história da Aruc que logo percebe-se que essa premissa procede. “O samba reflete as lutas, alegrias e a resistência do povo brasileiro, e é uma forma poderosa de comunicar emoções, experiências, trazer pautas relevantes, críticas sociais e até mesmo um ambiente aberto a manifestações. Além disso, promove a inclusão e a diversidade, permitindo que diferentes vozes e histórias sejam contadas”, adiciona Verônica.

 

Com a retomada dos desfiles carnavalescos em Brasília em 2023 e a promessa pelo GDF da permanência de tais eventos para 2025 em diante, a esperança dos sambistas da capital é a última que morre. Porém, talvez sejam necessárias algumas mudanças e um incentivo governamental adequado:

 

“É preciso encarar a discussão de que poderíamos ter alguma alternativa política, porque os governos, independente de partido, me parecem não tratar o carnaval brasiliense da forma que ele deveria ser tratado. Dão atenção para isso apenas depois do natal”, Moacyr Oliveira Filho tece a crítica sob a qual já vem refletindo há algum tempo. “Na minha opinião, o carnaval tem que ser tratado como política pública permanente, porque ele é uma cadeia produtiva importante. Ele gera emprego, gera renda, ele tira as crianças da rua.”

Revista Mosaico por Giovanna dos Santos

Professor orientador: Luiz Claudio Ferreira

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